segunda-feira, 18 de setembro de 2017

«Status quo»


O “Status quo”, ou ”Statu quo” como habitualmente é chamado na Terra Santa e em muitas publicações, refere-se à situação em que se encontram as comunidades cristãs da Terra Santa nas suas relações com os governos das religiões. 

Especificamente o “Status quo” indica a situação em que se deparam essas comunidades nos Santuários da Terra Santa. Situação que diz respeito tanto à propriedade quanto aos próprios direitos e também os direitos simultâneos com os outros ritos: no Santo Sepulcro, na Basílica da Natividade em Belém e no Túmulo de Maria em Jerusalém.



A vida nos Santuários é inseparável dos regimes políticos da Terra Santa, a situação de hoje é fruto de um lento processo que acabou por se consolidar. Durante os séculos XVII e XVIII, os gregos ortodoxos e católicos estiveram em contínua controvérsia em relação a alguns Santuários (Santo Sepulcro, Túmulo de Maria e Belém). Foi um período de “lutas fraticídias e intervenções políticas”. Através destes dolorosos acontecimentos chegou-se a uma situação ratificada num acordo assinado a 8 de Fevereiro de 1852 e designado com o termo de “Status quo”.

O “Status quo” nos Santuários da Terra Santa, especialmente no Santo Sepulcro, determina os sujeitos da propriedade dos Lugares Santos. Determinando ainda, de forma concreta, os espaços dentro do Santuário como também os horários e os tempos das funções, as movimentações e os percursos, bem como o modo como devem ser realizados, se lidos ou cantados, por exemplo.

É necessário recordar que além dos latinos, as comunidades oficiais no Santo Sepulcro são: os gregos, os arménios, os coptas e os sírios. Assim, cada mudança, por mais simples que seja, requer o acordo de todas as comunidades. No Santo Sepulcro estas comunidades orientam-se segundo um calendário próprio para cada rito. No que se refere à comunidade católica, os franciscanos seguem as festas segundo o grau de solenidade que precede a reforma do Vaticano II (este foi um direito adquirido no Status quo).

Para melhor compreender tal situação, é necessário analisar alguns acontecimentos históricos. Logo após o seu ingresso em Constantinopla, Maomé II proclamou o Patriarca Grego daquela cidade como autoridade religiosa e civil para todos os cristãos residentes em seu império. Assim a comunidade ortodoxa da Grécia, aproveitando o facto de serem súbditos do império otomano, pode influir na Terra Santa e exercer maior influência sobre os sultões, conseguindo assim, vantagens em seu favor nas negociações referentes aos Santuários. O clero helénico conseguiu progressivamente substituir o clero nativo pelo seu clero grego. 

Desde 1634 o Patriarca Ortodoxo de Jerusalém será sempre um helénico. Neste período iniciam também as reivindicações por parte do clero grego sobre os Lugares Santos. Em 1666 o Patriarca Ortodoxo Germano reivindicou os direitos ortodoxos da Basílica de Belém, como fizeram anteriormente os Patriarcas Sofrônio IV (1579-1608) e Teofânio (1608-1644). Semelhantes reivindicações foram feitas em seguida, exigindo o Santo Sepulcro em Jerusalém. 

Tais tentativas foram vetadas sobretudo graças à intervenção de Veneza e da França junto à ”Sublime Porta” (assim chamada a instância suprema no Império Otomano). 

Em 1633 o Patriarca Teofânio obteve uma assinatura datada do tempo de Omar (638) que conferia ao Patriarca Grego ortodoxo os direitos exclusivos sobre a Gruta da Natividade, o Calvário e a Pedra da Unção. As Potências Ocidentais conseguiram obter, sobre a pressão do Papa Urbano VII, a anulação da assinatura. Todavia, esta assinatura foi emanada uma segunda vez em 1637. Neste mesmo período Veneza, Austrália e Polónia estavam em guerra contra o Império, não tendo assim nenhuma influência a favor dos franciscanos. 

A situação tornou-se mais dramática ainda em 1676 quando o Patriarca Dositeo (1669-1707) conseguiu outra assinatura com a qual obteve o uso exclusivo de posse do Santo Sepulcro. Em seguida houve protestos ocidentais, e a Sublime Porta achou por bem nomear um tribunal especial para examinar os diversos documentos. Em 1690, com a oportuna assinatura, foi declarado pelo tribunal que os franciscanos seriam os legítimos proprietários da Basílica. Deste momento em diante as potências ocidentais foram sempre mais activas em relação ao Governo Otomano, para garantir os direitos católicos nos Lugares Santos. Foi assim que se prosseguiu com a paz de Carlowitz (1699), Passarowitz (1718), Belgrado (1739) e Sistow (1791). Todavia os resultados efectivos de tais intervenções não foram grandes. 

Em 1767, também na sequência dos muitos confrontos violentos e dos vandalismos que envolveram a população local, os Gregos Ortodoxos e os Franciscanos receberam por parte da Sublime Porta uma assinatura que concedia aos Gregos Ortodoxos a Basílica de Belém, o Túmulo de Maria e quase inteiramente a Basílica do Santo Sepulcro. Não obstante os repetidos apelos do Papa Clemente XIII às potências ocidentais, a assinatura veio confirmada e fixou de maneira já definitiva a situação dos Lugares Santos até os dias de hoje, salvo alguns pequenos detalhes. 

No século XIX a questão dos Lugares Santos transformou-se numa contenda política, especialmente entre a França e a Rússia. A França obteve a proteção exclusiva sobre os direitos dos católicos, e enquanto isso, a Rússia conseguia o mesmo sobre os cristãos ortodoxos. Em 1808 um grande incêndio na Basílica do Santo Sepulcro destruiu quase completamente a edícula cruzada do Sepulcro. 

Os gregos obtiveram a permissão de reconstruir uma nova edícula, a actualmente existente. 

Em 1829 foram reconhecidos aos armênios ortodoxos, de maneira definitiva, os actuais direitos na Basílica. 

Em 1847 os gregos retiraram a estrela de prata situada sob o lugar do nascimento do Senhor na Gruta de Belém. Sobre a estrela, havia uma escrita em latim que atestava assim a propriedade latina do lugar. 

Em 1852, o embaixador francês pediu, junto à Sublime Porta em nome das Potências católicas, reparação dos direitos dos franciscanos anteriores ao ano de 1767 e em particular a recolocação da estrela em Belém. O imperador otomano, com a pressão do Czar Nicolau, refutou e emanou um mandato com o qual decretava que o Status quo (isto é, conforme a situação vigente desde 1767) deveria ser mantido. Daí em diante, não obstante as inúmeras tentativas e as diversas guerras sucessivas a situação permaneceu imutável, ainda que a estrela tenha sido colocada no seu lugar. Nem mesmo depois da ruína do Império Otomano e da criação do mandato britânico o Status quo foi modificado.

Tal situação hoje é considerada um fato conquistado. 
  As relações entre as diversas comunidades cristãs ainda são reguladas pelo Status quo, porém são cordiais e amigáveis.

  O diálogo ecuménico conseguiu moderar os conflitos históricos.

  Desapareceu, pelo menos por parte dos católicos, a acusação de “usurpação” dos Lugares Santos. Muito pelo contrário, acredita-se hoje que a pluralidade de presença cristã nesses Lugares contribui para uma riqueza preciosa a preservar.

  Os periódicos encontros e as relações entre as diversas comunidades, concentram-se hoje, sobretudo sobre o restauro das Basílicas e sobre a possibilidade de uma melhor distribuição das diferentes liturgias.


As decisões são tomadas de comum acordo entre as diferentes comunidades religiosas, sem qualquer intervenção do exterior, sejam elas de carácter político ou civil.

(in, http://pt.custodia.org)

domingo, 17 de setembro de 2017

«Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?»

24º Domingo do Tempo Comum – Ano A
17 Setembro 2017

TEMA
A Palavra de Deus que a liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum nos propõe fala do perdão. Apresenta-nos um Deus que ama sem cálculos, sem limites e sem medida; e convida-nos a assumir uma atitude semelhante para com os irmãos que, dia a dia, caminham ao nosso lado.

O Evangelho fala-nos de um Deus cheio de bondade e de misericórdia que derrama sobre os seus filhos – de forma total, ilimitada e absoluta – o seu perdão. Os crentes são convidados a descobrir a lógica de Deus e a deixarem que a mesma lógica de perdão e de misericórdia sem limites e sem medida marque a sua relação com os irmãos.



EVANGELHO – Mt 18,21-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe:
«Se meu irmão me ofender,
quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes?»
Jesus respondeu:
«Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Na verdade, o reino de Deus pode comparar-se a um rei
que quis ajustar contas com os seus servos.
Logo de começo,
apresentaram-lhe um homem que devia dez mil talentos.
Não tendo com que pagar,
o senhor mandou que fosse vendido,
com a mulher, os filhos e tudo quanto possuía,
para assim pagar a dívida.
Então o servo prostrou-se a seus pés, dizendo:
‘Senhor, concede-me um prazo e tudo te pagarei’.
Cheio de compaixão, o senhor daquele servo
deu-lhe a liberdade e perdoou-lhe a dívida.
Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros
que lhe devia cem denários.
Segurando-o, começou a apertar-lhe o pescoço, dizendo:
‘Paga o que me deves’.
Então o companheiro caiu a seus pés e suplicou-lhe, dizendo:
‘Concede-me um prazo e pagar-te-ei’.
Ele, porém, não conseguiu e mandou-o prender,
até que pagasse tudo quanto devia.
Testemunhas desta cena,
os seus companheiros ficaram muito tristes
e foram contar ao senhor tudo o que havia sucedido.
Então, o senhor mandou-o chamar e disse:
‘Servo mau, perdoei-te, porque me pediste.
Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro,
como eu tive compaixão de ti?’
E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos,
até que pagasse tudo o que lhe devia.
Assim procederá convosco meu Pai celeste,
se cada um de vós não perdoar a seu irmão
de todo o coração».

AMBIENTE
Continuamos a ler o “discurso eclesial”, que preenche todo o capítulo 18 do Evangelho segundo Mateus. Este “discurso” tem como ponto de partida algumas “instruções” apresentadas por Marcos sobre a vida comunitária (cf. Mc 9,33-37.42-47), mas que Mateus ampliou de forma significativa. Os destinatários do discurso são os discípulos (na realidade Mateus pretende, sobretudo, atingir os membros dessa comunidade cristã a quem este Evangelho se destina).

Por detrás do texto que nos é hoje proposto, podemos entrever uma comunidade onde as tensões e os conflitos degeneram em ofensas pessoais e que tem muita dificuldade em perdoar.

MENSAGEM
O mandamento do perdão não é novo – como vimos, aliás, na primeira leitura. Os catequistas de Israel ensinavam a perdoar as ofensas e a não guardar rancor contra o irmão que tinha cometido qualquer falha. Os “mestres” de Israel estavam, no entanto, de acordo em que a obrigação de perdoar existia apenas em relação aos membros do Povo de Deus (os inimigos estavam excluídos dessa dinâmica de amor e de misericórdia). A grande discussão girava, porém, à volta do número limite de vezes em que se devia perdoar. Todos – desde os mais exigentes aos mais misericordiosos – aceitavam, contudo, que o perdão tem limites e que não se deve perdoar indefinidamente.

É nesta problemática que Jesus é envolvido pelos discípulos. Pedro, o porta-voz da comunidade, consulta Jesus acerca dos limites do perdão. Ele sabe que, quanto a isto, Jesus tem ideias radicais e, talvez com alguma ironia, pergunta a Jesus se, na sua perspectiva, se deve perdoar sempre (“até sete vezes?” – vers. 21: o número sete, na cultura semita, indica “totalidade”).

Jesus responde que não só se deve perdoar sempre, mas de forma ilimitada, total, absoluta (“setenta vezes sete” – vers. 22). Deve-se perdoar sempre, a toda a gente (mesmo aos inimigos) e sem qualquer reserva, sombra ou prevenção.

É neste contexto e a propósito da lógica do perdão que Jesus propõe aos discípulos uma parábola (vers. 23-35). A parábola apresenta-se em três quadros ou cenas.

O primeiro quadro (vers. 23-27) coloca-nos diante de uma cena de corte: um funcionário real, na hora de prestar contas ao seu senhor (provavelmente de impostos recebidos e nunca entregues), revela-se incapaz de saldar a sua dívida. O senhor ordena que o funcionário e a sua família sejam vendidos como escravos; mas, perante a humildade e a submissão do servo, o senhor deixa-se dominar por sentimentos de misericórdia e perdoa a dívida. Neste quadro, o que impressiona mais é o montante astronómico da dívida: dez mil talentos (um talento equivalia a cerca de 36 Kg e podia ser em ouro ou em prata. Dez mil talentos é, portanto, uma soma incalculável). O exagero da dívida serve, aqui, para pôr em relevo a misericórdia infinita do senhor.

O segundo quadro (vers. 28-30) descreve como esse funcionário que experimentou a misericórdia do seu senhor se recusou, logo a seguir, a perdoar um companheiro que lhe devia cem denários (um denário equivalia a 12 gramas de prata e era o pagamento diário de um operário especializado. Cem denários correspondia, portanto, a uma quantia insignificante para um alto funcionário do rei).

Quando estes dois quadros são postos em paralelo, sobressaem, por um lado, a desproporção entre as duas dívidas e, por outro, a diferença de atitudes e de sentimentos entre o senhor (capaz de perdoar infinitamente) e o funcionário do rei (incapaz de se converter à lógica do perdão, mesmo depois de ter experimentado a alegria de ser perdoado).

É precisamente desta diferença de comportamentos e de lógicas que resulta o terceiro quadro (vers. 28-35): os outros companheiros do funcionário real, chocados com a sua ingratidão, informaram o rei do sucedido; e o rei, escandalizado com o comportamento do seu funcionário, castigou-o duramente.
Antes de mais, a parábola é uma catequese sobre a misericórdia de Deus. Mostra como, na perspectiva de Deus, o perdão é ilimitado, total e absoluto.

Depois, a parábola convida-nos a analisar as nossas atitudes e comportamentos face aos irmãos que erram. Mostra como neste capítulo, a nossa lógica está, tantas vezes, distante da lógica de Deus. Diante de qualquer falha do irmão (por menos significativa que ela seja), assumimos a pose de vítimas magoadas e, muitas vezes, tomamos atitudes de desforra e de vingança que são o sinal claro de que ainda não interiorizámos a lógica de Deus.

Finalmente, a parábola sugere que existe uma relação (aliás já afirmada na primeira leitura deste domingo) entre o perdão de Deus e o perdão humano. Mateus estará a sugerir que o perdão de Deus é condicionado e que só se tornará efectivo se nós aprendermos a perdoar aos nossos irmãos? O que Mateus está a dizer, sobretudo, é que na comunidade cristã deve funcionar a lógica do perdão ilimitado: se essa é a lógica de Deus, terá de ser a nossa lógica, também. O que Mateus está a sugerir, também, é que se o nosso coração não bater segundo a lógica do perdão, não terá lugar para acolher a misericórdia, a bondade e o amor de Deus. Fazer a experiência do amor de Deus transforma-nos o coração e ensina-nos a amar os nossos irmãos, nomeadamente aqueles que nos ofenderam.

Deus pagará na mesma moeda e castigará quem não for capaz de viver segundo a lógica do perdão e da misericórdia? Não. Decididamente, o revanchismo e a vingança não fazem parte dos métodos de Deus… Mateus usa aqui – bem ao jeito semita – imagens fortes e dramáticas para sublinhar que a lógica do perdão é urgente e que dela depende a construção de uma realidade nova, de amor, de comunhão, de fraternidade – a realidade do Reino.


quinta-feira, 14 de setembro de 2017

O Conflito Israelo-Árabe, 26 e 27

Nos últimos anos o exército israelita tem intervindo com alguma regularidade na Faixa de Gaza para conter o contínuo rearmamento do Hamas e da Jihad islâmica e outros grupos radicais. O contrabando de armas através da fronteira de Gaza, em especial através de túneis que os egípcios não conseguem controlar, nunca cessou verdadeiramente. É aliás voz corrente que, nos dias de governo da Irmandade Muçulmana no Cairo, a situação foi muito favorável ao Hamas e seu rearmamento.

A última dessas operações decorreu entre 14 e 21 de Novembro de 2012 e terminou com um acordo de cessar-fogo mediado pelo governo do Cairo.

No último mês o número de mísseis sobre Israel vinha em crescendo. Porém, a actual crise começou com o rapto de três jovens israelitas na Cisjordânia a 12 de Junho. Os seus corpos mutilados seriam descobertos a 1 de Julho, existindo a convicção de que o rapto e assassinato foi perpetrado por uma facção ligada ao Hamas. Os responsáveis ainda não foram descobertos.

No dia seguinte, 2 de Julho, é a vez de um jovem palestiniano ser raptado e morto em circunstâncias horríveis (foi queimado vivo). Rapidamente se descobriu que o crime fora obra de um grupo de seis jovens extremistas israelitas (entre os 16 e os 22 anos), que foram detidos pelas autoridades.

De imediato o Hamas disparou mais de 100 mísseis contra território de Israel. Alguns desses mísseis são já bastante sofisticados, tendo caído a 160 quilómetros a norte da fronteira, já perto de Haifa.

Como resposta a este ataque vindo da Faixa de Gaza, Israel lança nova operação contra aquele território visando as infraestruturas que suportam o disparo de rockets e mísseis – desde o início do mês e até ao dia 13 de Julho já foram disparadas contra o território de Israel mais de 800 desses projécteis, que caem indiscriminadamente em zona habitacionais, em terrenos agrícolas ou em instalações industriais.

Iron Dome

A operação israelita, designada “Escudo protector”, mobilizou já 40 mil reservistas e, segundo o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, durará o tempo que for necessário.

A ofensiva terrestre que Israel desencadeou contra a Faixa de Gaza na noite de 17 para 18 de Julho tem como objectivo principal destruir uma infraestrutura de túneis com a qual o Hamas e outras organizações estavam a tentar infiltrar o território de Israel.

A Faixa de Gaza está limitada por uma vedação que é permanentemente vigiada pelo exército israelita, existindo apenas alguns, poucos, pontos de passagem e fronteira. Desde que se retirou completamente de Gaza em 2005, e abandonou os colonatos aí existentes, entregando a administração integral do território à Autoridade Palestiniana, que Israel enfrenta ataques vindos de Gaza. Os mais frequentes são os lançamentos de rockets, cujo alcance tem vindo a aumentar, e as tentativas de infiltração de militantes radicais capazes de desencadear acções no interior de Israel.

A forma escolhida pelo Hamas e pelas outras organizações radicais que operam em Gaza para realizar essas operações de infiltração tem sido a construção de túneis que passam por baixo da barreira de separação e terminam já bem dentro do território de Israel. A ameaça é real e, na passada terça-feira, o exército localizou e neutralizou um comando constituído por 13 militares do Hamas que já estava dentro de Israel, a apenas 10 minutos de marcha de uma comunidade agrícola localizada no sul do país, o Kibbutz Sufa. Esse comando tinha saído de um dos túneis construídos sob a barreira.

O exército israelita, IDF, divulgou entretanto imagens dessa operação:




A construção de túneis é habitual na Faixa de Gaza: no sul do território existem mais de 1200 dessas infraestruturas ligando Gaza ao Egipto, infraestruturas essas que têm sido usadas para todo o tipo de contrabando e também para levar para Gaza as armas que, depois, são disparadas contra Israel.

Neutralizar a estrutura de túneis, que a maior parte das vezes têm as suas entradas no interior de habitações, não pode ser feito a partir do ar, com ataques da aviação. E se Israel já desenvolveu a tecnologia que lhe torna possível defender-se das barragens de rockets – a “Cúpula de Ferro”, que localiza e abate no ar a maioria dos rockets disparados a partir da Faixa de Gaza –, o país não tem forma de localizar e neutralizar a infraestrutura de túneis.

De acordo com fontes militares citadas pelo Times de Israel, a missão das unidades que estão a ser enviadas para o interior da Faixa de Gaza é localizar as entradas desses túneis e neutralizá-los. Ao mesmo tempo os soldados que estão no terreno têm ainda como objectivo arrasar as rampas de lançamento de mísseis e rockets que, por estarem muito protegidas, não podem ser destruídas do ar. Trata-se de operações de alto risco, em que muitas vezes é necessário enfrentar militares do Hamas em combates casa a casa.

Ainda de acordo com as mesmas fontes, Israel não pretende reocupar Gaza ou estabelecer aí qualquer testa de ponte militar, antes pretende desarticular as infraestruturas que o Hamas e outros grupos radicais que operam naquele território têm construído nos últimos anos. Refira-se que, durante o período em que os seus aliados da Irmandade Muçulmana estiveram no poder no Cairo, o Hamas logrou reforçar o seu poderio militar, situação que se inverteu desde que o general Sissi tomou o poder: neste momento o exército egípcio voltou a fechar a rede de túneis entre Gaza e o Sinai, por onde passava muito do armamento destinado ao Hamas.

O essencial para entender 
o conflito israelo-palestiniano
José Manuel Fernandes
Observador – 14 de Julho de 2014

terça-feira, 12 de setembro de 2017

O Conflito Israelo-Árabe 22, 23, 24 e 25

A maioria dos colonatos começaram a ser instalados depois da guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel ocupou a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Os primeiros foram logo instalados nesse ano pelo governo trabalhista como parte de uma política de colonização.


A maioria dos colonatos foi construída na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Os colonatos construídos no Sinai foram desmantelados em 1997, após o acordo de paz com o Egipto, e os da Faixa de Gaza foram abandonados em 2005, depois de Israel ter decidido unilateralmente retirar por completo desse pedaço do território.

Os colonatos são de diferente tipo. Alguns, sobretudo na área de Jerusalém, são colonatos urbanos, zonas de subúrbio habitacional. Os outros são sobretudo colonatos agrícolas ou aquilo que se designa por aldeias de fronteira, estando nesta categoria alguns dos que foram construídos no vale do Jordão.

Apesar de, logo em 1967, uma parte da migração ter sido justificada com o regresso dos judeus a locais que tinham ocupado antes da guerra da independência, a maior parte dos colonatos são novas instalações.

A expansão dos colonatos na Cisjordânia retalhou este território, tornando difíceis as deslocações sobretudo desde que os israelitas construíram vedações e muros de separação.

Qualquer perspectiva de resolução para aquela região implica que se encontre que se encontre uma solução para os colonatos. Talvez seja possível, relativamente aos que se situam mais próximo da chamada “linha verde” – a linha do armistício no final da guerra da independência, em 1948 – redesenhar a fronteira, trocando terras, isto é, entregando Israel aos palestinianos terras situadas do lado judeu dessa “linha verde”. Esse cenário já foi trabalhado e negociado entre as parte, mas nunca se chegou a propostas viáveis. Mesmo assim Israel terá sempre de abandonar a maioria dos colonatos, e alguns são muito populosos, ao contrário do que sucedia no Sinai e na Faixa de Gaza.

Há também dificuldades políticas. Alguns dos partidos israelitas sem os quais não se consegue formar uma maioria de governo defendem a ideia de que a Cisjordânia – as terras bíblicas da Judeia e Samaria – são parte inalienável de Eretz-Israel, e por isso nunca deverão ser cedidas aos palestinianos. Os colonos também têm um partido político com representação parlamentar e são politicamente muito activos.

Em contrapartida Israel está totalmente isolado na sua política face aos colonatos. Já foi condenado duas vezes nas Nações Unidas e nem os seus aliados ocidentais apoiam a expansão desta forma de ocupação apesar de o lançamento de novas construções nunca ter verdadeiramente parado.

Actualmente vivem mais de 300 mil judeus nos colonatos da Cisjordânia e mais 200 mil nos que foram construídos nos subúrbios Jerusalém Oriental.

O principal aliado de Israel continuam a ser os Estados Unidos, mas nem sempre foi assim.

Quando Israel se tornou independente a posição americana foi ambígua. Por um lado, o presidente Harry Truman apressou-se a reconhecer o no Estado, assim permitindo que os Estados Unidos fossem os primeiros a fazê-lo. Mas, ao mesmo tempo, os Estados Unidos recusaram-se a vender as armas de que o jovem Estado necessitava para se defender dos exércitos árabes que tinham atacado imediatamente a seguir à proclamação da independência.

Nessa altura, depois de não ter conseguido apoios na Europa Ocidental, David Ben-Gurion virou para a União Soviética e acabaria por conseguir as armas de que necessitada junto da Checoslováquia. Estaline via com bons olhos um Estado que nascia sob a direcção de políticos fortemente ancorados à esquerda, todos de tradição trabalhista e marxista, regime esse que enfrentava países árabes ainda governados por monarcas que Moscovo via como reaccionários.

No período que vai da independência até à Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel tem como outro grande aliado a França, que lhe forneceria os aviões Mirage que se revelariam decisivos nessa campanha militar.

Mirage III - Força Aérea Israel
A Guerra dos Seis Dias provocaria uma alteração radical do sistema de alianças. A União Soviética, que entretanto começara a apoiar os regimes árabes resultantes dos golpes militares que haviam derrubado as monarquias tradicionais, retirou todo o apoio a Israel e obrigou os países satélites, incluindo a Checoslováquia, a interromperem todo o qualquer fornecimento de armas. A França do general De Gaule também se voltou contra Israel e cortou-lhe todo o apoio.

Ao mesmo tempo, uns Estados Unidos preocupados com o expansionismo soviético na região, e com a sua crescente influência junto de regimes como o de Nasser (Egipto) e Assad (Síria), abriu-se a Israel. Seis anos depois, em 1973, aquando da guerra do Yom Kippur, já seriam os EUA os principais fornecedores de armas a Israel, com a nossa base das Lages a servir de vital ponto de reabastecimento durante o período em que durou mais essa guerra. Esse alinhamento não se alterou até hoje, se bem que a administração Obama tenha marcado maiores distâncias do que era prática das anteriores administrações.

A nível regional Israel conseguiu normalizar a sua relação com o Egipto, graças ao acordo de paz de 1979, e mantém com a Jordânia uma coexistência relativamente pacífica. A relação com a Turquia, país membro da NATO, já conheceu melhores dias, tendo-se degradado desde que este país é governado por um partido islamista.

A maioria dos países árabes continua a não reconhecer a existência de Israel, mas desde a vitória israelita na guerra do Yom Kippur (1973) que o cenário de uma guerra convencional não se coloca.


Israel assinou, em 1979, um acordo de paz com o mais poderoso dos seus vizinhos, o Egipto. Esse acordo, negociado em Camp David sob os auspícios do presidente norte-americano, foi firmado por Anwar Sadat, pelo lado do Egipto (seria assassinado pouco tempo depois), e por Menachem Begin, pelo lado de Israel (Begin vinha da direita e fora líder dos sionistas radicais do Irgun). Por via desse acordo Israel devolveu ao Egipto a península do Sinai, que tinha ocupado durante a Guerra dos Seis Dias.

O segundo vizinho mais poderoso de Israel tem sido, tradicionalmente, a Síria, que continua bastante hostil mas que se encontra paralisada por uma guerra civil. O regime de Damasco está estrategicamente alinhado com o Irão, o inimigo de Israel mais vocal da região. Os montes Golã, no sul da Síria, continuam ocupados pelo exército judaico.

As relações com o Líbano são mais complexas, pois este país encontra-se profundamente dividido entre várias facções. O sul está nas mãos das milícias do Hezbollah, aliadas do Irão e armadas pelo Irão, que utilizam as suas bases junto à fronteira para realizar ataques, nomeadamente lançando rockets que contra as cidades e aldeias do norte de Israel.


Jordânia, o único país da região que dá cidadania plena aos palestinianos que lá vivem, também já assinou um acordo de paz com Israel. Foi em 1994, sob os auspícios de Bill Clinton, que Yitzhak Rabin apertou a mão a Hussein I da Jordânia. Entretanto os dois países também restabeleceram relações económicas.

A 23 de Abril o Fatah (dominante na Cisjordânia) e o Hamas (maioritário na Faixa de Gaza) assinaram um acordo destinado a ultrapassar as divisões que têm impedido a formação de um governo único nas zonas sob controle da Autoridade Palestiniana. Não é a primeira vez que isso sucede: em 2011 e 2011 a Fatah e o Hamas também tinham assinado acordos que, depois, não conduziram a lado nenhum

In, http://veja.abril.com.br
Nos termos deste acordo os dois movimentos palestinianos comprometiam-se a formas um governo de unidade nacional num prazo de cinco semanas e a organizar eleições para a Presidência e para o Parlamento num prazo de seis meses (as últimas eleições foram em 2006).

Para este acordo funcionar e, depois, permitir a criação de uma nova base para as negociações com Israel, é necessário que o Hamas se comprometa a reconhecer a existência do Estado judaico dentro das fronteiras anteriores a 1967, que aceite o princípio dos dois estados e que se comprometa com todos os acordos entretanto assinados pela Autoridade Palestiniana. Apesar de ter havido algumas garantias de que são esses os compromissos do Hamas, a verdade é que isso ainda não foi assumido publicamente de forma formal.

Israel desconfia profundamente desta evolução do Hamas e, quando foi anunciado o acordo, suspendeu de imediato as negociações que vinha a fazer com a Autoridade Palestiniana.


Seja lá como for, os primeiros prazos estabelecidos no acordo de 23 de Abril já foram ultrapassados sem que os seus objectivos tenham sido cumpridos.

O essencial para entender 
o conflito israelo-palestiniano
José Manuel Fernandes

Observador – 14 de Julho de 2014

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O Conflito Israelo-Árabe 18, 19, 20 e 21

Sim. É mesmo a única democracia consolidada do Médio Oriente. Em Israel há liberdade de expressão, uma grande variedade de órgãos de informação, uma miríade de partidos políticos, um parlamento representativo e um governo que os cidadãos podem facilmente destituir caso estejam descontentes, o que já aconteceu inúmeras vezes. As minorias, incluindo a minoria árabe, tem direitos políticos e também está representada no parlamento, o Knesset.


Nas primeiras décadas após a independência a política israelita foi dominada pelos trabalhistas, mais ligados aos ashkenazi, que dispuseram de confortáveis maiorias de governo. A partir da década de 1970 a direita do Likud, partido mais ligado aos sefarditas, passou a ganhar regularmente as eleições, tendo desde então havido alternância entre primeiros-ministros trabalhistas e do Likud, tendo mais recentemente surgido um terceiro partido centrista, o Kadima que chegou a fazer eleger primeiros-ministros.


O sistema político está contudo muito pulverizado, pois a lei eleitoral não favorece a concentração de votos e têm-se multiplicado os pequenos partidos com uma base religiosa ou étnica (ligados, por exemplo, às comunidades de origem russa) ou ainda representando interesses particulares (pensionistas, habitantes dos colonatos). Isso torna não só muito difícil formar maiorias no Knesset, onde há 12 partidos representados, como obriga a compromissos que tendem a paralisar a acção política.

Dificilmente, apesar de já terem ocorrido eleições. Na Faixa de Gaza domina o Hamas que, em 2007, assumiu o controlo daquela região sobrepovoada e dela expulsou os seus rivais da Fatah. Na Cisjordânia o poder é controlado pela Fatah, a facção que era originalmente de Yasser Arafat e é a dominante na OLP. Esta divisão ocorreu depois de o Hamas ter ganho as eleições legislativas de 2006 mas não se ter conseguido entender com a Fatah para uma partilha do poder – a Presidência da República está nas mãos da Fatah, que em 2005 elegera para o cargo Mahmoud Abbas, o sucessor de Arafat.

Depois da guerra civil que levou à separação entre Gaza e a Cisjordânia nunca mais se realizaram eleições. O mandato de Mahmoud Abbas, por exemplo, terminou em Janeiro de 2009, mas tem vindo a ser sucessivamente prorrogado. Quanto ao Parlamento, as primeiras eleições tiveram lugar em 1996 e foram boicotadas pelo Hamas. Só voltou a haver eleições em 2006, e nessa altura ganhou o Hamas, o conduziu à guerra civil Hamas-Fatah. Desde então não houve mais eleições.

Para além disso, nos territórios sob jurisdição da Autoridade Palestiniana não existe verdadeira liberdade de imprensa; os direitos das mulheres não são respeitados; e ocorrem com frequência execuções sumárias.

O princípio das negociações de Oslo que levaram ao histórico acordo israelo-palestiniano de 1993 foi o da troca de terra por paz: Israel devolvia à Autoridade Palestiniana, de forma progressiva, a soberania sobre Gaza e a Cisjordânia em troca do reconhecimento da sua existência. A prazo deveria nascer nos territórios entregues à Autoridade Palaestiniana um novo Estado que pudesse viver em paz com Israel.


Este plano sempre contou com ferozes opositores dos dois lados do conflito. Em Israel opuseram-se-lhe quer os que defendem um Grande Israel, e por isso não abdicam de uma fronteira que passe pelo vale do Jordão, quer os que receiam, por questões de segurança, a vizinhança de um Estado palestiniano com soberania plena.

Do lado palestiniano opõem-se-lhe todos os que continuam a não reconhecer o direito à existência do Estado de Israel. É essa a posição tradicional do Hamas, por exemplo.

De acordo com sondagens realizadas tanto em Israel como nos territórios é esta a solução desejada pela maioria tanto de israelitas como de palestinianos.

A solução de um único Estado parece inviável. Uma fusão pacífica que juntasse todos os que vivem no antigo espaço da Palestina do mandato britânico criaria um Estado de maioria árabe e representaria o fim da ideia de um Estado judeu, e é duvidoso, para não dizer altamente improvável, que pudesse funcionar em paz e democracia. A alternativa – um Estado judeu do Mediterrâneo ao Jordão – implicaria, para ter viabilidade, a expulsão de centenas de milhar de palestinianos ou a sua manutenção como cidadãos de segunda, sem direitos políticos, o que ninguém na comunidade internacional aceitaria.

Existe, apesar de ser um problema com contornos sobretudo políticos.

Na sequência da guerra da independência de Israel, em 1948, cerca de 700 mil palestinianos fugiram de suas casas, ou foram forçados a abandoná-las. Esses palestinianos espalharam-se pelos países da região, tendo sido construídos campos de refugiados no sul do Líbano, na Cisjordânia, na Jordânia e na Faixa de Gaza. Muitos desses campos ainda hoje existem, mesmo quando à vista desarmada pouco ou nada os diferencia de um bairro pobre.

2003
Porque é que, passados quase 70 anos, esta situação se mantém?
Primeiro, porque os países árabes da região, com a excepção parcial da Jordânia, nunca aceitaram integrar esses refugiados, da mesma forma que não aceitaram aceitar a própria existência de Israel. Depois porque desde a primeira hora que os palestinianos reivindicam o chamado “direito de retorno”, isto é, o direito a reocuparem as casas e as terras que abandonaram precipitadamente em 1947 e 1948. 

O “direito de retorno” tornou-se mesmo num dos mais delicados temas, e num dos mais difíceis, do processo de paz israelo-palestiniano, e as chaves das antigas casas abandonadas são hoje um símbolo muitas vezes agitado para efeitos mediáticos pelos descendentes dos refugiados originais.

Israel argumenta que o problema dos refugiados só existe porque os países árabes não quiseram integrar os palestinianos deslocados, ao contrário do que fez Israel, que acolheu e integrou centenas de milhar de judeus que, depois da independência, saíram ou foram obrigados a sair dos países árabes onde viviam há muitos séculos, nalguns casos há dois milénios. Israel também sabe que o retorno dos descendentes dos refugiados alteraria de forma dramática a composição demográfica do país, ameaçando a sua natureza de Estado judaico.

No século XX, na Europa e no Médio Oriente, houve inúmeros casos de guerras que terminaram com a deslocação forçada de populações – foi o que sucedeu, por exemplo, na sequência da guerra entre a Turquia e a Grécia; foi o que sucedeu aos alemães dos Sudetas e da Polónia Ocidental; foi o que se passou com o sérvios da Krajina. Houve também gigantescas transferências de populações no Punjab, quando a Índia se separou do Paquistão. 


A permanência de um estatuto de refugiado para uma massa tão grande de deslocados de há mais de seis décadas, quase três gerações, é por isso um caso único nas relações internacionais.




O essencial para entender 
o conflito israelo-palestiniano
José Manuel Fernandes
Observador – 14 de Julho de 2014

domingo, 10 de setembro de 2017

«Na verdade, onde estão dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles»

23º Domingo do Tempo Comum – Ano A
10 Setembro 2017

TEMA
A liturgia deste domingo sugere-nos uma reflexão sobre a nossa responsabilidade face aos irmãos que nos rodeiam. Afirma, claramente, que ninguém pode ficar indiferente diante daquilo que ameaça a vida e a felicidade de um irmão e que todos somos responsáveis uns pelos outros.

O Evangelho deixa clara a nossa responsabilidade em ajudar cada irmão a tomar consciência dos seus erros. Trata-se de um dever que resulta do mandamento do amor. Jesus ensina, no entanto, que o caminho correcto para atingir esse objectivo não passa pela humilhação ou pela condenação de quem falhou, mas pelo diálogo fraterno, leal, amigo, que revela ao irmão que a nossa intervenção resulta do amor.





EVANGELHO – Mt 18,15-20
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Se o teu irmão te ofender,
vai ter com ele e repreende-o a sós.
Se te escutar, terás ganho o teu irmão.
Se não te escutar, toma contigo mais uma ou duas pessoas,
para que toda a questão fique resolvida
pela palavra de duas ou três testemunhas.
Mas se ele não lhes der ouvidos, comunica o caso à Igreja;
e se também não der ouvidos à Igreja,
considera-o como um pagão ou um publicano.
Em verdade vos digo:
Tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu;
e tudo o que desligardes na terra será desligado no Céu.
Digo-vos ainda:
Se dois de vós se unirem na terra para pedirem qualquer coisa,
ser-lhes-á concedida por meu Pai que está nos Céus.
Na verdade, onde estão dois ou três reunidos em meu nome,
Eu estou no meio deles».


AMBIENTE
O capítulo 18 do Evangelho de Mateus é conhecido como o “discurso eclesial”. Apresenta uma catequese de Jesus sobre a experiência de caminhada em comunidade. Aqui, Mateus ampliou de forma significativa algumas instruções apresentadas por Marcos sobre a vida comunitária (cf. Mc 9,33-37. 42-47) e compôs, com esses materiais, um dos cinco grandes discursos que o seu Evangelho nos apresenta. Os destinatários desta “instrução” são os discípulos e, através deles, a comunidade a que o Evangelho de Mateus se dirige.

A comunidade de Mateus é uma comunidade “normal” – isto é, é uma comunidade parecida com qualquer uma das que nós conhecemos. Nessa comunidade existem tensões entre os diversos grupos e problemas de convivência: há irmãos que se julgam superiores aos outros e que querem ocupar os primeiros lugares; há irmãos que tomam atitudes prepotentes e que escandalizam os pobres e os débeis; há irmãos que magoam e ofendem outros membros da comunidade; há irmãos que têm dificuldade em perdoar as falhas e os erros dos outros…

Para responder a este quadro, Mateus elaborou uma exortação que convida à simplicidade e humildade, ao acolhimento dos pequenos, dos pobres e dos excluídos, ao perdão e ao amor. Ele desenha, assim, um “modelo” de comunidade para os cristãos de todos os tempos: a comunidade de Jesus tem de ser uma família de irmãos, que vive em harmonia, que dá atenção aos pequenos e aos débeis, que escuta os apelos e os conselhos do Pai e que vive no amor.


MENSAGEM
O fragmento do “discurso eclesial” que nos é hoje proposto refere-se, especialmente, ao modo de proceder para com o irmão que errou e que provocou conflitos no seio da comunidade. Como é que os irmãos da comunidade devem proceder, nessa situação? Devem condenar, sem mais, e marginalizar o infractor?

Não. Neste quadro, as decisões radicais e fundamentalistas raramente são cristãs. É preciso tratar o problema com bom senso, com maturidade, com equilíbrio, com tolerância e, acima de tudo, com amor. Mateus propõe um caminho em várias etapas…
Em primeiro lugar, Mateus propõe um encontro com esse irmão, em privado, e que se fale com ele cara a cara sobre o problema (vers. 15). O caminho correcto não passa, decididamente, por dizer mal “por trás”, por publicitar a falta, por criticar publicamente (ainda que não se invente nada), e muito menos por espalhar boatos, por caluniar, por difamar. O caminho correcto passa pelo confronto pessoal, leal, honesto, sereno, compreensivo e tolerante com o irmão em causa.

Se esse encontro não resultar, Mateus propõe uma segunda tentativa. Essa nova tentativa implica o recurso a outros irmãos (“toma contigo uma ou duas pessoas” – diz Mateus – vers. 16) que, com serenidade, sensibilidade e bom senso, sejam capazes de fazer o infractor perceber o sem sentido do seu comportamento.
Se também essa tentativa falhar, resta o recurso à comunidade. A comunidade será então chamada a confrontar o infractor, a recordar-lhe as exigências do caminho cristão e a pedir-lhe uma decisão (vers. 16a).

No caso de o infractor se obstinar no seu comportamento errado, a comunidade terá que reconhecer, com dor, a situação em que esse irmão se colocou a si próprio; e terá de aceitar que esse comportamento o colocou à margem da comunidade. Mateus acrescenta que, nesse caso, o faltoso será considerado como “um pagão ou um cobrador de impostos” (vers. 17b). Isto significa que os pagãos e os cobradores de impostos não têm lugar na comunidade de Mateus? Não. Ao usar este exemplo, o autor deste texto não pretende referir-se a indivíduos, mas a situações. Trata-se de imagens tipicamente judaicas para falar de pessoas que estão instaladas em situações de erro, que se obstinam no seu mau proceder e que recusam todas as oportunidades de integrar a comunidade da salvação.

A Igreja tem o direito de expulsar os pecadores? Mateus não sugere aqui, com certeza, que a Igreja possa excluir da comunhão qualquer irmão que errou. Na realidade, a Igreja é uma realidade divina e humana, onde coexistem a santidade e o pecado. O que Mateus aqui sugere é que a Igreja tem de tomar posição quando algum dos seus membros, de forma consciente e obstinada, recusa a proposta do Reino e realiza actos que estão frontalmente contra as propostas que Cristo veio trazer. Nesse caso, contudo, nem é a Igreja que exclui o prevaricador: ele é que, pelas suas opções, se coloca decididamente à margem da comunidade. A Igreja tem, no entanto, que constatar o facto e agir em consequência.

Depois desta instrução sobre a correcção fraterna, Mateus acrescenta três “ditos” de Jesus (cf. Mt 18,18-20) que, originalmente, seriam independentes da temática precedente, mas que Mateus encaixou neste contexto.

O primeiro (vers. 18) refere-se ao poder, conferido à comunidade, de “ligar” e “desligar”. Entre os judeus, a expressão designava o poder para interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não permitido e para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus; aqui, significa que a comunidade (algum tempo antes – cf. Mt 16,19 – Jesus dissera estas mesmas palavras a Pedro; mas aí Pedro representava a totalidade da comunidade dos discípulos) tem o poder para interpretar as palavras de Jesus, para acolher aqueles que aceitam as suas propostas e para excluir aqueles que não estão dispostos a seguir o caminho que Jesus propôs.

O segundo (vers. 19) sugere que as decisões graves para a vida da comunidade devem ser tomadas em clima de oração. Assegura aos discípulos, reunidos em oração, que o Pai os escutará.


O terceiro (vers. 20) garante aos discípulos a presença de Jesus “no meio” da comunidade. Neste contexto, sugere que as tentativas de correcção e de reconciliação entre irmãos, no seio da comunidade, terão o apoio e a assistência de Jesus.